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Entrevista. Um diálogo com Roberto Leher sobre a conjuntura brasileira atual

Para o “bolsonarismo” o inimigo interno é a cultura

Roberto Leher, professor de políticas públicas em educação e analista político, reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro de 2015 a 2019, analisa os últimos atos violentos de manifestantes bolsonaristas contra universidades e movimentos sociais como parte de uma estratégia de guerra cultural que precisa ser enfrentada por meio de uma educação crítica capaz de forjar um senso comum democrático e igualitário.

Após a derrota eleitoral, as milícias bolsonaristas promoveram uma escalada de violência contra movimentos sociais, universidades e centros culturais. Como ler esses ataques contínuos?

Na madrugada do dia 12 de novembro, um destacamento neonazista, miliciano, vinculado ao bolsonarismo atacou o Centro de Formação Paulo Freire do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em Pernambuco, pichando o espaço com suásticas e ateando fogo na casa da coordenadora do Centro. Com esse ato, agrediram dois importantes símbolos da democracia: o educador Paulo Freire e os movimentos sociais, em especial o MST. Nos dias subsequentes à eleição, em meio a mais de 400 bloqueios, ameaçaram incendiar e queimar vivos os estudantes que estavam em um ônibus da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atos assim estão acontecendo em todo o país. Os apoiadores de Bolsonaro não reconhecem o processo eleitoral e se aglomeram em frente aos quartéis clamando por uma intervenção militar, ou “federal”, pouco importando a óbvia ilegalidade criminosa de tais iniciativas.

É importante salientar que a extrema-direita logrou construir uma base de apoio massiva, estruturada a partir da imagem de que o verdadeiro povo brasileiro está ameaçado pelos inimigos internos que, por isso, devem ser neutralizados. Os referidos inimigos internos estão nas universidades, nos teatros, no mundo da cultura laico, secular, democrático e aberto ao tempo histórico. A extrema-direita religiosa e militar, mas também os neonazistas, estão empenhados na guerra cultural, não como uma iniciativa restrita à batalha das ideias, mas como estratégia militar. Inicialmente, o governo Bolsonaro e seus aliados se empenharam em construir uma imagem dos inimigos do verdadeiro povo brasileiro, a seguir, lançou uma cruzada contra a infraestrutura das instituições em que circulam os inimigos internos, cortando as verbas das universidades em tal proporção que o funcionamento da maioria das instituições está inviabilizado, desmoralizando e desqualificando as instituições de pesquisa como a Fiocruz e o Instituto Butantan – situação que agravou de modo mortal os efeitos da pandemia de Covid-19, mas também a Funai, o IBAMA, o ICM-Bio, a Fundação Palmares, a Biblioteca Nacional etc. etc. A ofensiva contra a educação chegou a tal ponto que Bolsonaro vetou uma lei que destinava recursos para garantir internet gratuita às escolas públicas e aos alunos durante a pandemia. Da mesma forma, foram afetados os institutos de pesquisa e todos as instituições que contradizem as concepções anticientíficas do mundo. Finalmente, construída a imagem do inimigo interno e desmontada a infraestrutura das instituições, o objetivo é a neutralização do inimigo. Daí o perigo imediato da reeleição de Bolsonaro. Os atos hostis à democracia nos mostram que o objetivo da neutralização segue sendo trabalhado pela extrema-direita.

A guerra cultural também teve como método a difamação de alunos e professores.

Inventaram que alunos e professores iam às universidades para usar drogas, promover orgias, doutrinar os jovens, sem qualquer compromisso com a formação e a pesquisa científica, construindo assim a imagem do inimigo interno. Como disse, o governo Bolsonaro caminhava para o terceiro ato da guerra cultural, que seria aquele de anular o inimigo. Alguns militares redigiram um documento oficial chamado “Projeto Nacional” que projeta o que deveria ser o país daqui a trinta anos, declarando, entre outras coisas, no cenário distópico, que “será necessário neutralizar os professores”. A reeleição de Bolsonaro teria possibilitado avançar nessa agenda e incentivar a repressão violenta contra estudantes, evidente nos episódios de agressões que estamos vivendo.

Ainda assim, a vitória de Lula foi reconhecida nacional e internacionalmente…

Sim, mas há milhões de pessoas que vivem numa condição de “dissonância cognitiva”, num contexto narrativo onde não tem lugar o uso crítico e autônomo da razão. Estão perplexos com Bolsonaro porque o presidente derrotado ainda não promoveu o golpe, mas, pela permanência de atos nos quartéis das forças armadas após três semanas da proclamação do resultado eleitoral, é possível concluir que os manifestantes da extrema-direita acreditam que o golpe irá acontecer em algum momento. A complexidade é que a dissonância cognitiva não é passível de ser superada pelo uso da razão, visto que estão imersos em um ambiente de ilusões compartilhadas por algoritmos nas redes virtuais que orientam o agir dessas pessoas, assim como de algumas correntes neopentecostais. O reconhecimento internacional, rápido e generalizado em todo mundo criou bases muito importantes para assegurar a legitimidade da vitória de Lula da Silva. A solidariedade generosa de milhares de companheiras e companheiros em todo mundo faz uma imensa diferença!

Nos governos Lula houve expansão das universidades por meio de cotas para as populações mais pobres, além da criação de Institutos Federais no interior. Como explica que – apesar deste crescimento – o contexto social seja tão dramático?

Com Lula houve uma mudança social em virtude das cotas e da expansão das universidades públicas sem precedentes, mas é preciso lembrar que a grande maioria das pessoas com nível superior foi formada em instituições mercantis que não asseguram uma formação científica e cultural que possibilite o uso do pensamento metódico frente aos problemas dos povos. Essas pessoas estão imersas em redes virtuais, não toleram os livros, a arte, a cultura e nem mesmo a imprensa convencional (que, aliás, muito contribuiu com o atual estado de coisas). Temos uma percepção clara de que os algoritmos favorecem a extrema direita. Milhões de pessoas não se informam através de jornais, mas vivem em um ambiente alienado pela reiteração de notícias falsas. É incrível pensar que quase dez mil pessoas comemoraram uma farsa que eles mesmos criaram, ou seja, que Alexandre de Moraes – presidente do Tribunal Superior Eleitoral – havia sido preso por fantasiosa conivência com fraude no resultado das urnas. É preciso um controle social das redes sociais que não permita mais a disseminação de notícias falsas e, sobretudo, de um movimento educacional internacional capaz de promover – como ensina Paulo Freire – a transição de uma consciência fanática para uma consciência crítica, indo além do senso comum.

Este movimento educacional passa necessariamente pela escola pública

No Brasil, a escola pública atende diariamente a mais de 45 milhões de jovens e muitas vezes é a única instituição pública nas áreas mais pauperizadas. Na minha opinião, o desafio não é dizer a quem vive em “dissonância cognitiva” que esta pessoa está errada e desconectada da realidade. Isso não cria transitividade entre cultura e setores populares. A escola pode desempenhar um papel muito importante se – ao invés de contrapor mecanicamente visões de mundo opostas – atuar de forma dialógica e complexa, na reflexão crítica como práxis transformadora. Infelizmente, em virtude da generalizada mercantilização da educação e do modelo competitivo-meritocrático, muitos professores são formados nesses ambientes virtuais, sem oportunidade de desenvolver o espírito crítico. Teremos, portanto, de trabalhar internacionalmente na formação de professores e incentivar o protagonismo estudantil e de conselhos populares para mudar o mundo das escolas, promovendo uma consciência crítica capaz de esclarecer o funcionamento dos algoritmos, das redes sociais, da desinformação, das formas de reprodução das desigualdades sociais e recuperar o espírito democrático capaz de formar cidadãs e cidadãos insubmissos.

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