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Brasil

Bolsonaro quer fechar novamente o sofrimento mental em manicômios

As reformas do PT- em especial o “De volta para Casa” de 2003 - visaram a reinserção social das pessoas em condições de sofrimento mental, promovendo a interação social e o bem-estar global no pleno exercício da vida civil, política e cidadania.

Bolsonaro quer fechar novamente o sofrimento mental em manicômios
Paolo Vittoria
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No Brasil, está gerando muita preocupação e polêmica a revogação do governo Bolsonaro do programa de desinstitucionalização para a reinserção social de pessoas com transtornos mentais por uso de álcool e drogas. A sequência de medidas políticas do ex-oficial militar no campo da saúde mental denota a clara vontade de fortalecer o tratamento em hospitais psiquiátricos de tipo manicomial e limitar atividades externas para a reinserção social. O mesmo governo Bolsonaro em fevereiro de 2021 em plena onda pandêmica – nomeou o psiquiatra Rafael Bernardon Ribeiro – publicamente a favor do choque elétrico – como coordenador geral do Gabinete de Saúde Mental, Alcoolismo e Outras. Em comunicado conjunto, organizações da sociedade civil para a saúde pública – inspirados no pensamento antimanicomial – evidenciaram “a grave ameaça para os direitos humanos e ao bem-estar das pessoas”.

CONVERSAMOS SOBRE O ASSUNTO com o psiquiatra brasileiro Jean Pierre Muller Hargreaves, atual diretor das Casas das Palmeiras – instituto de reabilitação mental baseado em terapias expressivas e que sempre se empenhou contra a coerção e tratamento agressivo de saúde mental. A Casa das Palmeiras foi fundada no Rio de Janeiro em 1956 por Nise Magalhães da Silveira (1905-1999): uma mulher de grande influência para a visão democrática da psiquiatria; aluna de Carl Jung que, na década de 1930, foi presa por leitura de livros de Marx.

Jean Pierre Muller Hargreaves – ao mesmo tempo em que critica fortemente Bolsonaro – alerta para as contradições internas das reformas de esquerda na área de saúde mental: “A proposta de Bolsonaro, como a maioria de suas ações, é desmontar as estruturas criadas pelo Partido dos Trabalhadores com o objetivo de direcionar o orçamento para instituições altamente suspeitas.

Isso é inqualificável. Parece que ele faz tudo de propósito da pior maneira possível: ele é contra tudo o que foi criado pela esquerda, ele destruir o progresso feito e trancar as pessoas nos hospitais. No entanto, devemos pensar não somente à inadequação da solução, mas ao quanto ela é influenciada pela falta de autocrítica da esquerda sobre as reformas psiquiátricas”.

AS REFORMAS DO PT – em especial o “De volta para Casa” de 2003 – visaram a reinserção social das pessoas em condições de sofrimento mental, promovendo a interação social e o bem-estar global no pleno exercício da vida civil, política e cidadania. Em particular, esses pressupostos resultaram no fechamento dos chamados manicômios e na abertura de residências terapêuticas. No entanto, na passagem da teoria para a prática nem tudo correu bem. “O programa criado por Lula apresenta grandes avanços na teoria, mas na prática cotidiana vemos também falhas que nunca foram revisadas. Há questões que não podem ser resolvidas no papel, mas na prática. Claramente os hospitais psiquiátricos tiveram que ser fechados porque eram grandes depósitos de pessoas, com pouco efeito terapêutico e condições precárias. O problema é que muitos pacientes não se adaptaram às residências terapêuticas e que a demanda de atendimento é muito maior do que a disponibilidade concreta».

AS RESIDÊNCIAS TERAPÊUTICAS são habitações localizadas em espaços urbanos, instituídas para atender às necessidades de abrigo e cuidado de pessoas com sofrimento mental grave que não dispõem de suporte e apoio familiar e social adequados. O número de pacientes no Brasil na teoria deveria variar de uma a não mais que oito pessoas em cada residência; o apoio profissional, sensível às solicitações e necessidades de cada pessoa, deveria considerar a singularidade da pessoa e não apenas em projetos e ações baseados no coletivo de moradores: essencialmente um atendimento personalizado. No entanto, na prática, as residências terapêuticas no Brasil costumam estar superlotadas: «O número de pacientes é muito superior ao que as estruturas podem acomodar, em alguns casos com mais de vinte pessoas. Muitos acabam indo para a rua – explica Muller Hargreaves – e sem nenhum cuidado. Políticas como essas devem ser feitas progressivamente, avaliando o que funciona e o que não funciona. Na França, por exemplo, a reforma psiquiátrica foi feita gradualmente. Eles tiveram dois anos para fechar e avaliar bem as alternativas».

A GRADUALIDADE DA REFORMA e os investimentos econômicos adequados que viabilizem as premissas teóricas certamente não interessam ao capitalismo, que se preocupa mais com o lucro do que com os cuidados com as pessoas. «O grande problema é que na psiquiatria precisa investir muito por um longo tempo longos prazos e, às vezes, por pequenos resultados. Investir nos espaços e na formação dos profissionais. Por exemplo, na Casa das Palmeiras vemos que pode demorar um ano para um paciente começar a interagir com as pessoas. O mundo capitalista não tem interesses concretos em investir um ano por um pequeno resultado. Assim, o número de vagas para pacientes psiquiátricos no Brasil caiu absurdamente: enquanto a Organização Mundial da Saúde recomenda de 3 a 5 vagas por 100 mil habitantes – em 2016, a região de São Paulo, a mais rica do Brasil, tinha apenas 0,17”.

NÃO APENAS OS ESCASSOS INVESTIMENTOS e a falta de gradualidade, mas sobretudo a falta de disposição de avaliar criticamente e verificar as próprias políticas, fez com que o Bolsonaro tivesse jogo para relançar um modelo hospitalocêntrico e atacar o setor público, efetivamente desqualificando o SUS – órgão público do sistema de saúde brasileiro, e os CAPS – Centros de Assistência Psicossocial – cuja criação havia sido influenciada, justamente, pela atuação de Nise da Silveira: “Nise elaborou para o governo Jânio Quadros um plano de saúde mental no Brasil que posteriormente inspirou os CAPS. Ela – evidencia o psiquiatra – tinha uma visão revolucionária e a autoridade dessa visão deriva do fato de que ela realmente viveu em função ao paciente. Seu ensinamento é muito profundo porque a diferença está na disposição de se relacionar com o sofrimento psíquico. Nise era uma pessoa utópica, mas capaz de rever e questionar a prática, portanto, com um sentido muito concreto. Sem essa problematização, fica muito difícil enxergar a realidade, acabamos criando soluções imaginando que sempre funcionam e que são as melhores, mas não é assim. E é essa capacidade de questionar a realidade que faltou nas reformas da esquerda, o que favoreceu a restauração de Bolsonaro».


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